Confesso: até há poucos dias Charlie Chaplin era para mim apenas um conjunto de imagens dispersas, um pastiche de filmes, sem que tivesse visto integralmente qualquer uma das suas obras. Estreei-me com “O Grande Ditador”, a sua primeira cedência ao sonoro, treze anos após o final da era do cinema mudo.
Em 1940, quando este filme saiu, os Estados Unidos ainda não estavam envolvidos na II Guerra Mundial, por isso o tom sarcástico e jocoso denota a distância a que se estava da realidade, no porto seguro da terra das oportunidades. Teria sido improvável a realização na Europa de um filme como este naquela altura, e desde esse momento essa abordagem tornou-se completamente impossível. A capacidade de ridicularizar exige que estejamos a suficiente distância física e temporal do evento, e por isso corporal e emocionalmente longe.
Numa alusão muito pouco disfarçada a Hitler na personagem do ditador de Tomania, Adenoid Hynkel, a Mussollini na de Benzino Napaloni, ditador de Bacteria, e a Goebels na personagem do Director de Propaganda Garbitsch, este filme, sobretudo visto agora à distância dos acontecimentos, é pleno de sentido de tempo e de crítica. Aliás, a crítica em Chaplin será a mais coerente das referências. Aqui, Chaplin aborda o fascismo e o seu duplo papel de ditador e barbeiro judeu marca o seu posicionamento na defesa da igualdade do homem independentemente da sua origem ou das suas crenças.
Conta-se que Chaplin decidiu incluir a cena final do discurso do barbeiro judeu quando soube que a França tinha sido invadida. O mesmo Chaplin afirma que se tivesse tido noção da extensão das atrocidades nazis não teria sido capaz de fazer pouco da sua loucura homicida. Quando o filme foi lançado, Hitler baniu-o de todos os países ocupados, mas acabou ele mesmo por ceder à curiosidade e consegui adquirir uma cópia através de Portugal. Teria sido no mínimo interessante saber a sua reacção.
Este filme está pleno de inteligência, atributo que caracteriza o humor de qualidade. Não só nos textos e brincadeiras com as palavras, mas também no ridículo exagero das situações, na imaginação dos detalhes. A acérrima competitividade entre os dois ditadores é hilariante. Sem dúvida que o riso, como arma de arremesso, como catalisador do pensamento e da reflexão, como instrumento da verdade, tem um poder tremendo.
E Chaplin é exímio nessa inteligência, na expressão, na comunicação, no humor, no trabalho que faz dos sentimentos. Um trabalho sem dúvida marcado pela sua longa experiência nos filmes mudos, em que um actor é todo um corpo. Recrimino-me a mim mesma por ter passado todo este tempo na ignorância. Sobretudo porque uma semana depois vi o “Tempos Modernos” (1936).
Agora não uma crítica política, mas social. À indiferença com que a sociedade trata cada indivíduo na sua ambiciosa escalada pelo poder. Como um simples número, ou uma simples peça na engrenagem, sem necessidades, sem desejos, sem sonhos. E a paradoxalmente constante tentativa do ser humano em acreditar e lutar pela felicidade.
Este era para ter sido o primeiro filme totalmente falado de Chaplin, mas em vez disso, e à excepção das canções no restaurante, o som é usado apenas quando provém de aparelhos mecânicos, reforçando o tema da desumanização da sociedade tecnológica. Esta é também a última aparição do personagem do Vagabundo, e Chaplin deixa-o pela primeira vez falar em frente à câmara, tendo insistido, no entanto, que a sua linguagem fosse universal. Daí que a letra da sua canção fossem apenas sons sem sentido, mas cuja história era facilmente compreensível através dos seus gestos.
Tive também oportunidade de descobrir que Chaplin escreveu a música para este e para todos os seus outros filmes.
Após este MEA CULPA, apenas posso prometer continuar a investigar. Porque manter a mente e o coração abertos é um dos grandes segredos para que possamos ser surpreendidos pela vida.
CITAÇÕES:
“A day without laughter is a day wasted.”
“I remain just one thing, and one thing only, and that is a clown. It places me on a far higher plane than any politician.”
“Life is a tragedy when seen in close-up, but a comedy in long-shot.”
     Espreitei ontem A 2 (suponho que é agora assim que devemos      oficialmente chamar o segundo canal da televisão de todos nós).     Estava lá o Orson Welles, com aquela sua voz deliciosa. Ainda      estou para saber como é que Spielberg e Cruise se pensam      desenvencilhar do seu projecto conjunto d’A Guerra dos Mundos      sem esta voz.
Espreitei ontem A 2 (suponho que é agora assim que devemos oficialmente chamar o segundo canal da televisão de todos nós). Estava lá o Orson Welles, com aquela sua voz deliciosa. Ainda estou para saber como é que Spielberg e Cruise se pensam desenvencilhar do seu projecto conjunto d’A Guerra dos Mundos sem esta voz.
Um agressivo entrevistador, que mais do que saber queria apenas encaixar as respostas que já tinha previamente na sua cabeça às suas próprias perguntas, ia atirando. Orson Welles, com uma agilidade que a sua possante figura não supunha, esquivava-se com a sua inteligência, e com uma visão do mundo bastante atípica para um americano.
O que me ficou na cabeça, e no coração, foi a sua resposta relativamente ao que o teria levado a inovar a forma de fazer-se cinema com o seu Citizen Kane (O Mundo as Seus Pés, 1941): a IGNORÂNCIA. Com apenas 26 anos e quase tendo apenas dirigido no teatro, Orson Welles desconhecia as limitações do cinema. Ao sugerir determinadas abordagens ele não sabia que elas nunca tinham sido tentadas. Teve a sorte de trabalhar com Gregg Toland, um destemido aventureiro na cinematografia.
Adormeci com esse pensamento: o mérito do desconhecimento é que não sabemos onde devemos parar. A inovação é, assim, uma estranha mistura de conhecimento e ignorância.
Suponho que não deveria confessar as minhas fraquezas num espaço público, um pouco à laia das sessões de auto-crítica durante a Revolução Cultural chinesa, sob o perigo de insuflar a minha culpa e de dar armas aos meus “inimigos”. Mas acredito também que é hora de explicar um pouco, a quem por acaso passe um dia por este espaço, o tipo de relação que eu tenho com o cinema.
A motivação para esta expiação prende-se sobretudo com o momento actual, em que existem onze filmes em cartaz que eu gostaria de ver e o tempo de que disponho espreme-se entre a necessidade de trabalhar para pagar as contas, comer (pouco, claro, para poder ter algum dinheiro para me enfiar numas quantas salas de cinema), estar com os amigos e a família, e aproveitar os últimos raios quentes de um Verão que está prestes a depor as armas.
Sim, sou cinemólica, cinemo-dependente, cinemo-obsessivo-compulsiva, o que lhe quiserem chamar. Não é algo de que me orgulhe particularmente, mas também admito que não me envergonho desta minha característica (estive quase para dizer qualidade, mas não gosto de me gabar, muito). É apenas um facto com o qual aprendi a viver. Mas acreditem que a ginástica que por vezes tenho que fazer com o tempo é digna da prestação da romena Catalina Ponor nos Jogos Olímpicos de Atenas.
Normalmente tenho o cuidado de não impor o meu gosto e o meu hábito aos meus amigos, a maioria dos quais já esboça aquele sorriso condescendente que se costuma fazer aos loucos sempre que lhes digo que vou ou fui ver um filme. Felizmente, o meu gosto ecléctico permite-me ainda ir tendo companhia nos (poucos) bons blockbusters que vão havendo. Mas as minhas idas ao King, Quarteto, Nimas e ciclos “esquisitos” são na sua generalidade feitas a solo.
Não me queixo. Afinal de contas, o acto de ir ao cinema e ver um filme não exige de facto companhia, e eu não sou de muitos comentários no durante. O que me custa por vezes é, no depois, não ter com quem partilhar as minhas opiniões sobre alguns diamantes que me caiem no colo no meio naquelas minas escuras. Ou para me lamentar das raras jóias falsas que compro nos meus extremos alternativos. Mas acho que agora tenho o meio que me permite isso mesmo: confessar os êxitos e os falhanços nesse longo caminho de descoberta.
Eu sou aquela que está no meio da sala num fim de tarde de um dia de semana, que não come pipocas, que manda calar os que estão a falar para ouvir os silêncios projectados, que se levanta só quando termina o genérico final, que já leu e volta a ler o que se escreveu sobre o filme, que revê as fichas técnicas na Internet para tirar dúvidas sobre a cinematografia do realizador e dos actores, que acrescenta cada filme a uma base de dados ordenada alfabeticamente (também essa mania, a das listas...).
A última vez que fui ao cinema foi a 24 de Agosto, ou seja, há treze dias atrás. Fiz uma sessão dupla no cinema Nimas, o que é um feito especialmente doloroso durante a semana. Mas essa dose daria normalmente para me aguentar no máximo seis/sete dias. Por isso, os sintomas de ressaca já se começam a fazer sentir: desconcentração, alienação, ansiedade, insónia, tonturas, falta de apetite. O que, aliado ao stress de excesso de oferta, começa a colocar-me num estado de angústia e apreensão que só com duas horas fechada numa sala escura pode ser curado.
Há pessoas que me aconselham a arranjar uma televisão com ficha scart onde consiga finalmente ligar o aparelho de DVD que um grupo de amigos me ofereceu no meu aniversário e me converta aos home-movies. O meu sofá até é confortável e poderia assim aproveitar e riscar alguns filmes de uma interminável lista de pendentes antigos que me dá vergonha de referir (há umas lacunas imperdoáveis, mas isso fica para outra auto-crítica). Mas há algo no som suave de uma bobina a rodar atrás de nós, no cheiro de vidas passadas deixado na sala, na atenção concentrada dos olhos num ecrã que cobre todo o nosso horizonte visual, que é insuperável. E as inovações tecnológicas têm, sem dúvida, acrescentado valor a essa experiência, captando os nossos sentidos no limite da sua exigência e tele-transportando-nos para um mundo que é o nosso durante um breve espaço de tempo.
Sinto falta disso. De me perder na vida de outras pessoas, mesmo que fictícias, de me colocar na sua pele, de me identificar com umas e de repudiar outras, de trautear bandas sonoras e de ficar até ao fim para saber quem cantava aquela música que me fez pele de galinha, de decidir ir para a casa a pé, mesmo à chuva, para pensar no que acabei de ver e para responder às questões que ficaram no ar.
O cinema já me deu paz, já despertou a minha raiva, arrancou-me lágrimas e ofereceu-me sorrisos, já me fez-me pensar e, curiosamente, também parar de pensar, e continua, a cada dia, a surpreender-me. É de tudo isso que sinto falta.
Por isso, acho que hoje vou ao cinema.