Hollywood sempre gostou de uma boa guerra - e das lutas sujas também. Os Óscares são o melhor campo de batalha para uma lista infindável de maledicência, roupa suja e ataques venenosos. Afinal, a estatueta pode dourar a carreira de um filme ou de um actor. Ou matá-la, até uma próxima "première".
Após os atentados de 11 de Setembro, a imprensa americana anunciou o advento de uma nova indústria na meca do cinema: pipocas sem violência, sobriedade nas festas e unanimidade a rodos. Nem uma coisa, nem outra. Logo depois, em Março de 2002, o actor Russell Crowe digladiava-se na arena, apesar do seu combate ser no campo da inteligência, sem ponta do «Gladiador» que lhe tinha dado o Óscar de Melhor Actor em 2001. O filme «Uma Mente Brilhante», biografia filmada do matemático esquizofrénico e prémio Nobel John Nash, foi à época acusado de "apagar" sinais de anti-semitismo e homossexualidade (que existiriam na biografia real de Nash) - para se portar bem nos Óscares e não afastar os votos de judeus e "gays".
Nesse mesmo ano, os apoiantes dos três actores negros nomeados - o maior número de sempre numa só edição de Óscares - sopravam aos quatro ventos que Hollywood provaria que era racista se nenhum deles ganhasse. Ganharam dois dos nomeados (Denzel Washington e Halle Berry, a primeira mulher). É verdade que, à época, e em 74 edições, apenas um actor negro tinha recebido o principal prémio de interpretação - Sidney Poitier.
«As campanhas foram sempre extremamente competitivas, mas não me lembro de uma que tenha sido tão baixa e tão suja como a deste ano [de 2002]», comentava Robert Osborne, colunista do Hollywood Reporter e autor de um livro sobre a história dos Óscares («70 Years of the Oscar: The Official History of the Academy Awards»). Depois disso, os ataques continuaram sujos. E as campanhas mais violentas.
Afinal, nada é deixado ao acaso. Como políticos, os nomeados visitam potenciais votantes. As feiras e os mercados são substituídos por lares de antigos trabalhadores da indústria e os tempos de antena são "banners" e anúncios de páginas inteiras em "sites" e revistas da especialidade (basta ir às páginas "online" da Variety ou do Hollywood Repórter e descobrir a quantidade de filmes anunciados «for your consideration» - e o "for your" não é dirigido ao espectador, mas sim ao membro da Academia). Peritos de "marketing" são contratados para vender o seu produto - ou, pior, para dizer mal, muito mal, das coisas dos outros.
Mas a prática de conquistar os votos dos membros da Academia por métodos menos ortodoxos (que não sejam apenas as qualidades dos próprios filmes) não é de agora. Em 1930, a fundadora da Academia Mary Pickford ganhou o Óscar para melhor actriz depois de sumptuosas festas dadas a membros da instituição. E na década de 30, os grandes estúdios diziam aos seus artistas contratados em quem votar.
No entanto, a guerra aberta que agora antecede o "dia D" começou de facto há coisa de cinco anos: a Miramax produziu o vencedor da noite, «A Paixão de Shakespeare», com uma agressiva campanha publicitária - e «O Resgate do Soldado Ryan», de Steven Spielberg, não foi salvo do desastre. O mais forte na publicidade nem sempre é o melhor na qualidade cinematográfica.
A verdade é que o negócio do cinema não se compadece com insucessos na noite dos Óscares. Todos sorriem, todos batem palmadinhas nas costas uns dos outros, mas a cerimónia pode revitalizar a carreira industrial de um filme (como fez por exemplo com «O Silêncio dos Inocentes»). E se uma maldadezinha ajudar, por que não? «The show must go on».
Um casal palestiniano que necessita de ir a um hospital, uma ambulância do outro lado à sua espera. Entre eles um jipe israelita totalmente blindado que não lhes permite a passagem. Os palestinianos perguntam porquê. Do interior do jipe uma voz metálica responde-lhe apenas que não podem passar. E há uma câmara que filma tudo isto. E Isto é a curta metragem de documentário “Detail” de Avi Mograbi. E num simples momento muito do que é a questão palestiniana hoje, está ali.
Este foi um dos vários documentários apresentados na edição de 2004 do DOCLisboa que tentaram mostrar os acontecimentos na Palestina que não são noticia de primeira página nos meios de comunicação mundiais, e mais concretamente, o dia-a-dia da ocupação israelita da Palestina. Documentários como “Checkpoint” de Yoah Shamir, documento que acompanha os rituais (de humilhação) a que os palestinianos são obrigados nos postos de controlo israelitas espalhados pelo território palestiniano. Ou “Le Mur” de Simon Bitton, sobre a construção do Muro israelita que separa Israel da Cisjordania (e que pelo caminho vai retalhando ainda mais este território) e “Newstime” de Azza Al-Hassan, sobre o dia-a-dia de jovens palestinianos atiradores de pedras (este acompanhado pela curta-metragem (de ficção) de Elia Suleiman “Cyber Palestine” e que contou com a presença do realizador, que respondeu a algumas questões do público após a sua exibição). Provenientes dos dois territórios em conflito (“Checkpoint”, “Detail” e “Le Mur” são produções israelitas, “Newstime” e “Cyber Palestine” palestinianas) e de qualidade variada, os dois primeiros muito bons, os restantes nem por isso, são coincidentes no entanto a mostrar como o lado mais forte humilha o lado mais fraco, e ao fazê-lo estão a demonstrar como a ocupação israelita só piora tudo, porque fomenta o ódio dos palestinianos em relação a Israel, porque desumaniza os israelitas na sua relação com os palestinianos, porque torna impossível o entendimento entre as duas partes.
Mas o DOCLisboa não se ficou pela Palestina. Passou também por Espanha, através da secção “Foco em Espanha”, dos quais pude ver “La Pelota Vascã” do Julio Medem (realizador alvo de culto pessoal por parte do autor destas linhas) excelente documentário sobre a questão basca, que ouve e expõem as várias faces do conflito basco (ouvindo todos ou quase todos, do lado independentista e espanholista, familiares de etarras presos e familiares de vitimas de terrorismo, políticos, académicos, representantes da sociedade civil, etc...). Assente quase exclusivamente nas declarações dos diferentes entrevistados; num perfeito exercício de montagem e de utilização dramática da banda sonora, consegue mostrar toda a complexidade da questão basca e de como ela não pode ser reduzida a uma situação de bons contra maus (e talvez por isso tenha sido tão atacado pelo governo espanhol da altura, liderado por Aznar e pelo seu PP, aquando da sua estreia); “Asaltar los Cielos” de Lopez-Linares e Royo, biografia do homem que assassinou Trotsky, mas também dos ambientes sociais e políticos por onde passou (desde o movimento operário catalão anterior e durante a guerra civil espanhola, à União Soviética de Estaline e posteriormente de Brejnev, os círculos trotskystas no México, etc...) e “Cravan vs Cravan” de Isaki Lacuesta documentário sobre Arthur Cravan, poeta dadaista, pugilista, personagem “bigger than life” das esferas intelectuais europeias do início do século XX, objecto extremamente interessante que cruza o documental com a ficção, através de um narrador/investigador que se vai assumindo, com o desenrolar do documentário como um alter ego do próprio Cravan.
Também uma verdadeira personagem é Abel Ferrara, realizador nova iorquino que é o foco do documentário “Abel Ferrara: Not Guilty”. Produzido para a série “Cinema de Notre Temps” do canal arte-tv (o tal que a TVCabo decidiu retirar do pacote básico, mas que pelo que parece ninguém, com excepção do Prado Coelho, parece sentir grande falta, mas se se pode ver bons documentários em festivais tão na moda quem é que sente falta de os ver na televisão) este documentário limita-se a acompanhar um Ferrara absolutamente eléctrico (e se ele é assim no seu estado normal, como seria nos seus tempos de junkie) nas suas deambulações pela cidade de Nova Iorque. Simplesmente genial.
O DocLisboa também passou pela América do Sul, através de documentários como o português “Buenos Aires Hora Zero” ou o brasileiro “O Prisioneiro da Grade de Ferro”. O primeiro dá-nos, sob o pretexto macguffiano da procura do último descendente dos primeiros colonos portugueses na América do Sul espanhola, um retrato da cidade de Buenos Aires e das personagens que a compõem. Objecto interessante, especialmente quando se afasta da narração off do realizador e se deixa perder na cidade e nos seus habitantes, e com um ‘final twist’ (embora não propriamente surpreendente) quase à Shyamalan. Quanto ao documentário brasileiro, segue o dia-a-dia da prisão brasileira de Carandiru, que era, até a sua demolição, a maior prisão da América Latina. Feita com base em registos vídeo captados pelos próprios prisioneiros, o melhor que se lhe dizer é que consegue transportar-nos de facto, durante duas horas, para o interior da própria prisão.
E pronto, junta-se-lhes uma dose q.b. de gente e de tempo gasto nas filas para comprar bilhetes e temos o que foi o meu DOCLisboa 2004.
de Stephen Lowenstein, Penguin Books (2002)
Este é um dos livros que, desde há já algum tempo, é um habitante assíduo da minha mesa de cabeceira, malas de viagens e mesas de café.
Descobri-o numa pequena referência de uma publicação da especialidade e não descansei até colocar as mãos naquela textura levemente rugosa e o meu nariz no meio daquele odor quente do papel novo.
Depois de calcorrear todos os antros de literados (leia-se livrarias) de Lisboa, cheguei à conclusão que Portugal iria manter-se incógnito a esta edição durante mais algum tempo. Um tempo demasiado longo para que a minha característica impaciência por tudo o que emana boas vibrações me deixasse repousar em paz. Resolvi, pois, enveredar pelo muito adiado caminho da compra cibernética. No entanto, as minhas reticências quanto a largar no ciberespaço um pequeno pedaço da minha identidade (financeira) mantinham-se enraizadas na mentalidade genética do “dinheiro debaixo do colchão”. Felizmente, tenho amigos bem mais inovadores que eu e aproveitei-me da boleia de um deles, ficando a portagem (leia-se portes de envio) a meu cargo.
Porque comprar na Amazon dos Estados Unidos saía mais barato, esta peça de escrita atravessou o imenso Oceano Atlântico e veio parar às minhas mãos, como eu sabia que estava destinado, ainda com o cheiro de casco de navio e uma humidade salgada a pingar das folhas. Eu compararia este livro a uma deliciosa barra de chocolate que se vai saboreando com tempo e dedicação, mas isso seria se, nas minhas mãos, o chocolate conseguisse sobreviver mais de 1 minuto, o que não é o caso. Mas a ideia é mais ou menos essa.
O título do livro é pouco enigmático e não deixa margens para dúvida. Stephen Lowenstein, um jovem realizador, é quem faz as perguntas, e, um pouco à semelhança da sua curta-metragem “The Man Who Held is Breath” (1996), também nós sustemos a respiração, suspensos no ar que é trocado nas diversas entrevistas realizadas a uma mão cheia (e bem) de realizadores.
O elemento comum que une as diversas experiências é o relato detalhado, vivo, revelador e puro da realização do seu primeiro filme. Este é o bastidor dos bastidores: da escrita do guião à recolha de financiamento, do casting dos actores à composição da equipa técnica, da filmagem à edição, da venda do filme ao seu visionamento. Todos os aspectos da indústria cinematográfica são aqui explorados na primeira pessoa, reflectindo a luta por um espaço de criatividade individual, na sua grande maioria feita à custa de consideráveis sacrifícios, sobretudo pessoais.
Um conjunto de realizadores tão diverso como Oliver Stone e Anthony Minghella (o mainstream de Hollywood), os irmãos Coen e Kevin Smith (os independentes americanos), Ken Loach e Stephen Frears, Mike Leigh e Neil Jordan (os ingleses), Ang Lee, Bertrand Tavernier e Pedro Almodóvar (os “estrangeiros”) falam sobre a sua “estreia”. São diferentes personalidades e abordagens cinematográficas, mas o seu entusiasmo é comum. Lowenstein sugere que tal se deve à rara oportunidade de poderem falar sobre um filme que não estão a tentar vender.
Cada capítulo traz a história do nascimento de um filme, que, como um filho, leva o seu progenitor a recuar na memória através de uma viagem emocional, muitas vezes tragicómica. O que se descobre, mais do que a personalidade dos realizadores ou as técnicas subjacentes à concepção de uma primeira obra cinematográfica, é um profundo amor pelo cinema, pela arte de transmitir ideias com imagens, de contar histórias através da combinação de sons e silêncios, de cores e luzes, de planos, película e lentes.
São histórias de triunfo e desastre, de noites em branco e dias de tensão, histórias de homens e mulheres que se empenharam num sonho, que construíram o seu caminho profissional através de descobertas, umas emocionantes outras desoladoras, a par de fugazes momentos de sorte. A inocência, a credulidade, a utopia, a liberdade, chocam aqui com a realidade e as suas contingências, com a usurpação, o cinismo e a arrogância. Erros, inseguranças, ignorância técnica, transformam-se na aprendizagem e esta só é possível através de uma grande dose de humildade e respeito pela experiência de outros.
Apesar do pedaço estanque que é cada capítulo, este livro consegue ser dotado de uma unidade apenas possível pela coerência do entrevistador, pelo seu profundo conhecimento dos entrevistados e das suas obras, pela enorme inteligência das perguntas e pela imensa entrega de quem deixa descobrir as suas memórias mais íntimas.
Rebeldia, inconformidade, atrevimento, originalidade, humor, dedicação, responsabilidade, amor.
Preciso dizer mais?
[ACTUALIZAÇÃO 22 Dezembro 2005]
Já à venda numa FNAC perto de si.
CONTÉUDO:
JOEL and ETHAN COEN: Blood Simple (1984)
TOM DICILLO: Johnny Suede (1991)
ALLISON ANDERS: Gas Food Lodging (1992)
KEVIN SMITH: Clerks (1994)
STEPHEN FREARS: Gumshoe (1971)
KEN LOACH: Poor Cow (1967)
MIKE LEIGH: Bleak Moments (1971)
BERTRAND TAVERNIER: The Watchmaker of Saint-Paul (1974)
BARRY LEVINSON: Diner (1982)
OLIVER STONE: Salvador (1986)
NEIL JORDAN: Angel (1982)
ANTHONY MINGHELLA: Truly, Madly, Deeply (1991)
MIRA NAIR: Salaam Bombay! (1988)
MIKE FIGGIS: Stormy Monday (1988)
PEDRO ALMODÓVAR: Pepi, Luci, Bom (1980)
STEVE BUSCEMI: Trees Lounge (1996)
GARY OLDMAN: Nil by Mouth (1997)
ANG LEE: Pushing Hands (1992)
P. J. HOGAN: Muriel’s Wedding (1994)
JAMES MANGOLD: Heavy (1995)
SUGESTÃO:
Ver o filme respectivo após a leitura de cada entrevista poderá aumentar o prazer de ambas as actividades.
Para quem, como eu, perdeu algumas boas peças cinematográficas no meio de tanta solicitação, as reposições do Cine-Estúdio 222 permitem-nos recuperar alguns bons momentos de cinema.
Já distante dos seus tempos da Zero em Comportamento, mas atento à receptividade do público para os circuitos menos comerciais, neste mês de Novembro, por 3,50€, o Cine-Estúdio 222 oferece uma aliciante programação:
01 – 04 Novembro: WONDERLAND, de James Cox
05 – 08 Novembro: GODSEND – O ENVIADO, Nick Hamm
09 – 11 Novembro: INTERVALO, de John Crowley
12 – 15 Novembro: DUPLEX, de Danny de Vito
16 – 19 Novembro: MADAME SATÃ, de Karim Äinouz
20 – 23 Novembro: TOUCHING THE VOID – UMA HISTÓRIA DE SOBREVIVÊNCIA, de Kevin Macdonald
24 – 26 Novembro: ÊTRE ET AVOIR – SER E TER, de Nicolas Philibert
27 – 30 Novembro: ANY WAY THE WIND BLOWS – PARA ONDE O VENTO SOPRA, de Tom Barman
É desta que vou conseguir ver o Madame Satã e o Être et Avoir...!
ACTUALIZAÇÃO[novembro 17, 2004]
Por motivos técnicos, o filme “Madame Satã”, de Karim Äinouz foi substituído pelo filme “Super Size Me”, de Morgan Spurlock.